O céu estava tingido de laranja e roxo, um espetáculo raro no fim daquela tarde de outono. Valery mal notava a beleza do céu enquanto seus cabelos quase dourados se encharcavam com a leve chuva. Ela estava no velório de seu pai adotivo, Heitor, e, mesmo cercada pelos moradores do vilarejo, sentia-se completamente sozinha. Seus olhos azuis, normalmente brilhantes e cheios de vida, estavam mergulhados em lágrimas que ela teimava em segurar.

Enquanto o cortejo seguia até o cemitério do vilarejo, Valery se mantinha em silêncio, envolta em sua dor. Foi então que um homem que ela nunca havia visto antes se aproximou. Ele vestia roupas simples, mas havia uma gravidade em seu semblante que a fez erguer o olhar. O estranho inclinou a cabeça em respeito e, com uma voz calma e profunda, disse:

— Minhas condolências, Valery. Meu nome é Claremont. Sou um velho amigo de seu pai.

Valery, confusa, enxugou os olhos com as costas da mão.

— Eu… eu não sabia que ele tinha amigos fora do vilarejo.

Claremont esboçou um sorriso triste, seu olhar refletindo uma dor profunda.

— Seu pai e eu éramos amigos há muito tempo. Antes de você entrar na vida dele. Ele me pediu que, se algo acontecesse com ele, eu viesse para apoiá-la. Estou aqui para cumprir essa promessa.

Valery sentiu uma estranha nostalgia ao olhar para Claremont, como se o conhecesse de algum lugar distante. Talvez fosse sua tristeza, que parecia genuína, que a fazia acreditar que ele realmente conhecia Heitor. Ainda assim, uma parte dela permanecia cautelosa.

O velório continuou em silêncio, e, quando finalmente terminaram as despedidas, a noite começou a cair. Claremont permaneceu ao lado de Valery, sem dizer muito, mas sua presença era reconfortante de uma maneira inexplicável.

— Deixe-me preparar um quarto para você, Claremont — ofereceu Valery, quando voltaram ao rancho.

— Não, não é necessário — respondeu ele firmemente. — Prefiro dormir no paiol. As pessoas podem pensar coisas erradas se me virem passando a noite em sua casa.

Valery ficou surpresa com a recusa, mas aceitou, compreendendo sua preocupação. Ela o guiou até o paiol, onde eram armazenados os laticínios do rancho.

Na manhã seguinte, Claremont despertou com o som de passos entrando no paiol. Num pulo, ele se levantou e, antes que pudesse pensar, rendia o intruso com uma faca no pescoço.

— Quem é você e o que quer aqui? — rosnou Claremont, seus olhos brilhando com desconfiança.

— Claremont, pare! — gritou Valery, correndo para dentro do paiol. — Deixe-o em paz! O que há de errado com você? Esse é Carulos, o queijeiro que trabalhou com meu pai!

Claremont relaxou imediatamente, soltando Carulos, que ofegava em choque.

— Me desculpe — murmurou Claremont, claramente envergonhado. — Eu… pensei que fosse uma ameaça.

Valery ainda estava irritada, mas Carulos, embora abalado, sorriu gentilmente.

— Está tudo bem. Fico feliz que alguém esteja aqui para cuidar da garotinha de Heitor.

Valery tinha apenas 19 anos, e o peso do mundo parecia ter se instalado em seus ombros. Apesar do mal-entendido, ela percebeu que Claremont estava ali para proteger, como havia prometido. Mas ainda restava a dúvida: quem exatamente era esse homem que surgira em sua vida em meio a toda essa tristeza?

Valery foi até o paiol para chamar Claremont para o café da manhã. Ele estava arrumando o espaço simples onde havia passado a noite, ainda desconfiado após o incidente com Carulos. Ao vê-la, ele relaxou um pouco, mas ainda mantinha aquele ar sério e misterioso.

— Bom dia, Claremont. Eu vim chamá-lo para o café. Vamos? — disse Valery, com um sorriso tímido.

— Claro, estou pronto — respondeu ele, ajeitando a faca em sua cintura antes de segui-la.

Quando saíam do paiol em direção à casa principal, Dalton, o capataz do rancho, chegou. Ele era um homem de meia-idade, robusto e com o rosto marcado pelo trabalho árduo no campo. Valery o cumprimentou com um aceno e um sorriso, confiando plenamente nele, assim como seu pai havia feito.

— Dalton, cuide de tudo, por favor. Eu… ainda não sei exatamente o que fazer — disse ela, sua voz revelando a incerteza e a dor que sentia.

— Pode deixar, senhorita Valery. Vou garantir que tudo continue funcionando como Heitor gostaria — respondeu Dalton com um tom respeitoso, fazendo um leve aceno com a cabeça.

Ao se sentarem à mesa para o café da manhã, Valery e Claremont trocaram olhares de vez em quando, mas rapidamente desviavam, cada um perdido em seus próprios pensamentos. O silêncio era quase palpável, até que Valery, incapaz de conter sua curiosidade, decidiu quebrá-lo.

— Sabe, eu não entendo bem uma coisa. Você disse que era amigo do meu pai há muito tempo, desde antes de eu aparecer na vida dele. Mas… você não parece ser muito mais velho do que eu.

Valery tinha razão. Claremont era um homem alto e robusto, com cabelos negros como uma noite sem luar. Aparentava ter, no máximo, uns 23 anos, enquanto Heitor faleceu aos 58. A diferença de idade entre eles parecia improvável para uma longa amizade.

Claremont sorriu levemente, mas seus olhos mantinham a seriedade.

— Você está certa, Valery. Não aparento a idade que realmente tenho. Mas acredite, sou muito mais velho do que pareço, embora não tão velho quanto seu querido pai.

Valery o observou atentamente, tentando decifrar o enigma que era Claremont. Ele parecia sincero, mas havia algo nele que ela ainda não conseguia entender.

— Valery — continuou Claremont, mudando o tom para algo mais direto —, sei que é cedo para falar sobre isso, mas… o que pretende fazer a partir daqui?

Valery suspirou, sentindo o peso da responsabilidade sobre seus ombros.

— Eu ainda não sei. Talvez, por enquanto, eu cuide do rancho. Foi o que meu pai fazia, e acho que é o certo a fazer — disse ela, mais para si mesma do que para ele.

Claremont a observou com um olhar crítico, mas não disse nada por um momento. Valery notou a desaprovação em seus olhos e, antes que ele pudesse falar, perguntou:

— O que você acha que eu deveria fazer?

Claremont hesitou, então perguntou com firmeza:

— O que seu pai lhe disse para fazer?

As palavras dele ecoaram na mente de Valery, trazendo de volta uma lembrança. Seu pai havia caído doente um mês antes de falecer, e nenhum dos médicos que o visitaram souberam explicar o que estava acontecendo. Um dia, durante sua enfermidade, ele a chamou para perto e disse que, se algo acontecesse com ele, ela deveria seguir seus sentimentos e buscar saber sobre sua verdadeira origem.

Valery hesitou, não querendo compartilhar essa memória com Claremont. Tinha medo de parecer estranha, ou talvez até mesmo louca.

— Meu pai… não me disse muita coisa — mentiu ela, tentando desviar o assunto. — Acho que eu só preciso de um tempo para pensar.

Claremont a observou intensamente, seus olhos parecendo ler a alma de Valery.

— Quanto você sabe sobre sua verdadeira origem? — perguntou ele, direto.

Valery arregalou os olhos, assustada. Como ele sabia? Será que estava lendo sua mente? Ela se levantou abruptamente.

— Eu acho que já é hora de ir trabalhar — disse ela, tentando disfarçar o nervosismo.

— Vou acompanhá-la — disse Claremont, se levantando imediatamente.

— Não, obrigada — respondeu Valery, um pouco mais ríspida do que pretendia. — Eu não trabalho no rancho. Sou professora na escola do vilarejo, dou aula para as crianças em fase inicial de alfabetização.

Valery
Valery

Claremont ficou surpreso, mas a acompanhou mesmo assim. Ele assistiu cada uma das aulas que Valery deu durante o dia, observando-a com admiração. Ela tinha uma habilidade natural para ensinar de forma simples, e as crianças a adoravam. O carisma de Valery era inegável, e Claremont começou a entender porque Heitor a havia criado com tanto cuidado.

No fim da tarde, ao retornarem para o rancho, passaram por Carulos, que estava indo para casa. Ele os cumprimentou alegremente, aliviado ao ver que alguém estava cuidando da jovem Valery.

Enquanto caminhavam, Claremont de repente parou, entrando em alerta. Ele se colocou à frente de Valery, como se a protegesse de algo invisível. Valery nem percebeu que os olhos de Claremont brilhavam em tom amarelo profundo.

— O que foi? — perguntou Valery, confusa.

Uma voz ameaçadora veio de trás de um eucalipto que beirava a estrada.

— Ora, ora, ora… Claremont da Lamentação. Não posso dizer que esperava encontrá-lo aqui, mas também não é um prazer.

Um homem esguio saiu das sombras. Seus olhos dourados e profundos brilhavam com malícia, e suas unhas eram tão longas que poderiam ser chamadas de garras. Seus cabelos eram vermelhos como sangue, e ele exalava uma presença ameaçadora.

— Quem é você? — exclamou Valery, o medo crescendo em seu peito. — Você não é alguém do vilarejo, então o que quer aqui?

O homem riu baixinho, com desprezo.

— Isso não é óbvio, princesa? Sem a barreira de Heitor, vim buscar sua cabeça. Nada demais.

Valery sentiu o sangue gelar. Claremont se preparou para o que estava por vir, seu corpo tenso como uma corda prestes a se partir.

Claremont
Claremont

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